Sonhos

Estou sozinha em casa e ainda de pijama. Tenho uns vinte e poucos anos, e a casa onde estou é a única onde vivi até essa idade. Estou grávida de fim de tempo. Vou à casa-de-banho e quando estou sentada na sanita, uma vontade imensa de puxar toma conta de mim. Percebi que estava na hora. Penso que tenho de chamar alguém mas a vontade crescente em fazer força e as dores não me deixam mexer. Vou ter de ter a criança sozinha, penso novamente. Apoio-me na pedra do móvel do lavatório, ponho-me na posição que me é mais confortável e puxo, respiro e semicerro os dentes como a intuição me dita. Tiro umas toalhas do móvel e ponho-as no chão. Passado pouco tempo, tenho um bebé, sujo e muito chorão do lado de fora. Embrulho-o e seguro-o colado a mim. A minha preocupação vira-se para o cordão umbilical. Como fazer?! Vou à cozinha buscar molas da roupa, e aperto-o o melhor que consigo, cortando-o de seguida. Pego no telefone e chamo o 112 para nos virem buscar.

Fico ali enamorada do meu bebé, e decido-lho o nome. Aquela cara tão perfeitinha e o cabelito todo colado, a boquinha que abre e fecha num bocejo lento. Uma tranquilidade, uma felicidade como não existe outra. De seguida, aquela vontade volta. Apetece-me puxar e muito. Na barriga sinto como que outro bebé. Não é possível, penso eu. O médico não se pode ter enganado e serem gémeos!? Depois lembrei-me de ter ouvido falar em alguém que teve gémeos e que um nunca se deixou ver por estar sempre atrás do outro. Pode ter acontecido o mesmo. Vou ter outro bebé! E volto a preparar-me, pousando o bebé que tinha nos meus braços na banheira, embrulhado na toalha e numa manta.

Repete-se tudo. Muito esforço, muita dor, e um bebé volta a sair de dentro de mim. Tão diferente do primeiro, de outro sexo até. Muito chorão, muito sujo, muito mas muito lindo aos meus olhos. Desta vez, as molas da roupa já estavam à mão, e tudo foi feito com maior destreza. Dois bebés. Lindos, e que me pareciam bem de saúde. Eu, cansada, transpirada, dorida mas muito feliz. O que vale é que a ambulância já deve vir a caminho. Não saio daquela casa-de-banho. Mantenho-me ali com os meus dois bebés, e seguro-os junto de mim. Bem coladinhos a mim.

Eis senão quando, aquela dor regressa. Ai não pode ser, digo eu. E a ambulância que não há meio de chegar. A dor aperta a vontade de puxar também. Não podem ser três, penso eu, num desespero crescente. Em tantas ecografias, como é que não viram isso? A dor cresce mas o meu cansaço é demasiado. Ponho os dois bebés na banheira. Tiro as últimas toalhas do armário. Estou cansada, eu não consigo, é o único pensamento que me assola. E a ambulância que não chega.

A dor e a necessidade de tirar aquele bebé de dentro de mim é maior que o meu cansaço. Puxo, respiro e sigo sem pensar o que o meu corpo me dita. Novamente um bebé chorão, sujo e lindo, e tão diferente dos outros dois me enche os olhos de lágrimas. Nesse momento entram finalmente os médicos do INEM que tomam conta da situação. Suspiro de alívio e perco as forças que pareciam restar.

Fecho os olhos, e quando os abro já não estou na casa-de-banho. Estou na minha cama. Na casa onde vim morar depois de casada, com o meu marido ao lado a dormir um sono profundo. Olho para a barriga, e vejo o meu ventre liso. Foi um sonho. Um sonho tão intenso, que me deixou transpirada, ofegante e com todos os meus ossinhos doridos. Levanto-me, mas as pernas falham-me, dói-me a andar e o cansaço é brutal. Foi só um sonho. Não estou grávida nem planeio a vir a estar tão depressa. Já não me consigo lembrar do sexo dos bebés, mas tenho a sensação que o primeiro e o último tinham sido meninas, e o segundo um rapaz. Já não me consigo lembrar dos nomes que escolhi. Mesmo as caras de cada um estão envoltas numa névoa que não me deixa reconhecer os seus contornos.

Durante todo o dia, me doeu o corpo e o cansaço não me largou. Mas ao mesmo tempo, um sorriso idiota teimava em fixar-se na minha cara. A lembrança deste sonho não vai desaparecer nunca. E quem sabe, se um dia, estes três bebés não vão fazer mesmo parte da minha vida.

Sorte ou Azar

Às vezes penso que tenho muita sorte por ainda pisar esta terra. Se existe destino eu não sei. Se a nossa hora está marcada e à espera de ser alcançada, também não sei se acredite. A verdade é que já por três vezes, eu podia ter partido para outro lado, que se espera melhor, e fiquei cá. Como à terceira não foi de vez, resta-me aproveitar bem todos os momentos que me restam.

Das idades já não me lembro bem. Foram de certo entre os meus onze e os quinze anos. Mas as histórias, essas hão-de ficar guardadas na memória, para um dia, quem sabe, contar aos netos, enrolados numa manta à lareira nos dias chuvosos de Janeiro.

A praia da Zambujeira do Mar serve de cenário à primeira das três. Uma manhã de primavera que não convida os turistas a acotovelarem-se no pequeno areal. A praia toda estava por minha conta e da minha madrinha. Deitada na toalha, de headphones nos ouvidos e virada de costas para o mar, a minha madrinha devorava um livro. Eu andava por ali. Já era grandinha e sabia o que fazia. Sabia nadar e tinha muito respeito ao mar onde chapinhava os pés.

Brincava ali pela beirinha com a espuma que se formava. Fazia castelos na areia molhada, que só o eram para quem fosse muito imaginativo. Jogava à apanhada com as ondas daquele mar que se mostrava calmo. Até que sem saber como, dou por mim enrolada numa dessas ondas. Venho ao de cima e vejo a praia, que antes estava ali, mesmo debaixo dos meus pés, mas que agora estava lá longe. Tento chamar pela minha madrinha, mas ou era a voz que não saía, ou era ela que não me ouvia. Tentava esbracejar mas a corrente começava a empurrar-me contra as rochas e precisava dos braços para afastar-me das arestas afiadas pela força das marés. Tentava nadar de volta à costa mas parecia não sair do mesmo sítio.

Mais uma onda que me afunda e quando volto à superfície, vejo alguém a correr na minha direcção. Correu, nadou, agarrou-me e tirou-me daquele mar que ocultava na sua calma a força que realmente tinha. Estava a correr à beira-mar e reparou em mim. Tive sorte, porque a minha madrinha só se apercebeu que alguma coisa se tinha passado quando apareci ao pé dela ofegante. Contada a história, a única pessoa que precisava de assistência médica era ela.

Se desafiei a morte desta vez, consegui pregar-lhe uma rasteira ainda maior da segunda. Pensem em férias de verão. Das que duravam três meses. Eu e os meus irmãos, rumávamos sempre até terras transmontanas para brincar e pular livres como os pássaros. A casa servia apenas para comer e dormir, e alguns afazeres dos quais não nos conseguíamos livrar, que a minha mãe não brincava em serviço. Em frente à casa da minha avó, o Largo do Cimo d'Aldeia convidava a todo o tipo de brincadeiras. Do outro lado, a casa que deu nome ao largo, centenária a brasonada, tinha uma das paredes com uma barriga que já impunha respeito.

Todos os anos, se falava que podia ruir. Todos os anos, as crianças da aldeia se juntavam para brincar junto a essas paredes que proporcionavam a sombra fresca nas tardes quentes de Agosto e que abrigavam os morcegos que saíam apenas ao início da noite. Todos os anos os pais diziam que não nos queriam ali, e todos os anos a gente por lá continuava. Uma manhã, um pouco antes da hora de almoço, éramos quatro crianças a brincar. Eu, os meus irmãos, e a minha grande amiga das férias de Verão, que morava na dita casa.

A mãe dela chamou da janela a pedir lenha para acabar de preparar o caldo, que nestas casas antigas o fogão ainda era desnecessário. Contrariados, afastamo-nos uns cinco metros da brincadeira, para ir buscar a lenha. Um pouco mais à frente a minha mãe lavava nos tanques, e assim que nos vê, chama-nos e corremos em sua direcção. Quando a alcançamos, ouve-se um estrondo imenso e uma nuvem de pó, ergue-se donde ainda há menos de dois minutos estávamos a brincar. Aquelas pedras centenárias não se aguentaram mais e ruíram de uma só vez, preenchendo todo o largo, e esmagando os brinquedos que lá nos esperavam.

Quer os quartos do primeiro andar, quer as cortes do rés-do-chão, ficaram à vista de todos, despidos das paredes que os resguardavam. Um camião estacionado à frente da nossa casa, foi empurrado contra a mesma, pela força daquelas pedras enormes. Um cenário impressionante, que poderia ter sido uma verdadeira catástrofe, não fosse ainda se usar lenha para fazer o caldo, e o fogo estar fraco para o acabar. Mesmo assim, não foi a partir daí que comecei a gostar de sopa.

E como reza o ditado, três é a conta que Deus fez, como tal, até parecia mal que não acontecesse outra história para atingir esse número. Como prenda de termos passado de ano, os meus pais compraram a mim e ao meu irmão, duas biclas novas. A minha, rosa choque, mesmo ao estilo de uma teenager, e a do meu irmão azul e branca, bem à rapaz. A condição imposta pelos meus pais, para que andássemos com as bicicletas na rua, foi a de que tratássemos sozinhos dos documentos para o poder fazer, respeitando as leis municipais. Uma forma de nos responsabilizar e mostrar que, para andar na estrada, não era preciso apenas descer os três lances de escada com a bicla às costas. Por isso, lá tratámos de comprar os reflectores obrigatórios, e preencher a papelada na câmara municipal, com os pedidos de matrículas para as bicicletas e das licenças de condução de velocípedes sem motor.

Tínhamos de ir prestar provas antes de nos ser atribuída a licença. No dia combinado, lá fomos nós responder com mestria às perguntas sobre sinais de trânsito e fazer um oito sob o olhar atento do funcionário da câmara. Passados no exame, restava esperar que nos entregassem as ditas licenças. Ora, toda a gente sabe que não há nada melhor que uma corrida de bicicletas, e para comemorarmos o feito, foi o que decidimos fazer na viagem de regresso a casa. Tínhamos de descer uma rua com alguns cruzamentos, sendo o último o que tinha mais movimento. As bicicletas foram ganhando velocidade por ali abaixo, e eu liderava triunfantemente a disputa.

O único problema, foi que o último cruzamento, aquele onde íamos ter de parar, estava cada vez mais próximo e a estrada cheia de cascalho solto. Daquele excelente para se derrapar em grande estilo, mas péssimo para se travar sem se acabar com os joelhos no chão. Eu apertava o travão de trás de mansinho e a bicicleta tentava fugir-me, apertava um pouco mais o travão e olhava para o tractor das obras que se aproximava pela esquerda. Se apertasse com mais força e a bicicleta simplesmente ia a deslizar até ao cruzamento, se não travasse acabaria debaixo do tractor. Eu travava, e o tractor continuava, eu travava e o tractor repara nos dois putos destravados em cima das bicicletas. Eu continuo a travar e o tractor está mesmo ali. Eu consigo parar e a minha roda da frente está encostada à roda do tractor, que entretanto, travou a fundo mas conseguiu parar.

De olhar fixo no motorista, com o coração aos pulos e com a respiração suspensa durante tempo incerto, volto a montar a bicicleta, contorno o camião e lá vou eu, em frente, como se nada tivesse passado, mas sem conseguir olhar para trás uma única vez.

Posso dizer que o azar já me apareceu do mar, da terra e do ar, mas que felizmente a sorte esteve comigo de todas as vezes. Posso não ter sorte ao jogo, mas haverá melhor jackpot que estes?!

A escola primária

Há certas coisas que nunca se esquecem, e na minha memória guardo imagens intactas dos tempos passados na escola primária. Lembro-me da cara da minha professora que me acompanhou os quatro anos. Lembro-me da sala de aula, que foi sempre a mesma. Lembro-me de alguns colegas na perfeição, dos mapas de Portugal e dos trabalhos feitos ao longo do ano expostos nas paredes.

A escola era nas traseiras da minha casa, não tinha de atravessar uma única estrada para lá chegar, por isso, desde cedo, passei a ir sozinha. Ainda hoje, sempre que a vejo, surgem estas memórias em estilo fast forward que me fazem viajar no tempo e sentir menina novamente.

Tenho a sensação que o Outono e o Inverno eram mais rigorosos nessa altura. Recordo-me da minha mãe vestir-me dois pares de collants, da chuva constante e das minha galochas de borracha. Recordo-me de existir na sala de aulas um aquecedor eléctrico virado para nós, e outro mais pequeno virado para os pés da professora. Recordo-me dos dias sem recreio por causa da chuva intensa. Recordo-me do leite com chocolate morno, que era distribuído pelos alunos num jarro de plástico enorme, daqueles que se usava para ir buscar água nas aldeias. Recordo-me da fila indiana para tomar o comprimido de fluór, e não posso deixar de recordar, por motivos bem menos agradáveis, a régua de madeira.

Mas os primeiros dias de escola não foram fáceis. Desde os três anos que andava num infantário, o Patinho Feio. Nessa altura e fora do que era habitual para a época, eles faziam a preparação para a primária de acordo com os resultados de testes psicotécnicos de cada criança. Quando entrei para a primária, já sabia escrever algumas palavras fazer algumas somas, e outras coisinhas de certo que simples. O primeiro dia de aulas ia feliz e aguardava-o com muita espectativa, mas após uma semana, em que ouvia e fazia apenas o que já sabia, começou o drama para a minha mãe.

Eu recusava-me a ir, dizia que não queria lá estar porque já sabia tudo. Não queria e eram fitas e choros porque queria fazer mais coisas. O problema lá se resolveu, com a professora a estabelecer para mim e outro colega na mesma situação, um plano de estudo um pouco mais avançado. Motivada novamente, a ida para a escola passou a ser ansiada diariamente.

Houve no entanto, dois episódios dos quais nunca me irei esquecer e que se destacam nas minhas memórias. O primeiro que não abona nada a meu favor, mas que agora me faz rir a bom rir, ao imaginar a cara da minha mãe. Ambos aconteceram nas primeiras semanas de aulas da primeira classe.

A professora tinha por hábito dialogar com os pais, e chamava-os à escola sempre que havia algo que o justificasse. Um dia, no meu caderno, ia o recado da professora a pedir que a minha mãe fosse ter com ela. Quando lá chegou, estava a professora a falar com uma mãe exaltada. Queixava-se, a alto e bom som, que a filha aparecia mordida e beliscada, que não podia ser, que a miúda que lhe fazia isso tinha de ser castigada e por aí fora. A professora desculpava-se, que era difícil vigiar todos os meninos durante o tempo todo, mas que iria tentar mudar a situação. A senhora bradava insultos, e a minha mãe começava a pensar se também eu sofreria dos mesmo ataques.

Sai a senhora ainda a protestar, e a minha mãe aproxima-se.

A outra menina deve ser terrível! - diz ela referindo-se à menina que dava as dentadas e beliscaduras. Ela faz isso com todos?

Não, é apenas com esta criança que é a colega de secretária, responde a professora. Mas sabe, essa menina é a sua!

E a minha mãe ia tenho um ataque! Ficou vermelha de vergonha e a pedir um buraco para se enfiar! A minha?! A Sandra?! Não pode! - dizia ela.

Sim, a sua. Mas ela tem um motivo. É que esta menina não tem hábitos de higiene, e a sua diz que ela cheira mal e que não a quer ao pé dela. Então pica-a com o lápis, belisca-a e morde! Mas depois de as ter separado, a sua filha parou. Tentei chamar a atenção da mãe para a falta de higiene, mas como viu, vai ser muito difícil dialogar com ela. Chamei-a a si para a pôr a par da situação.

A minha mãe sentia-se cada vez mais envergonhada e pedia desculpa a torto e a direito, que ia falar comigo e que a professora me chamasse à atenção sempre que fosse necessário. Não quero imaginar-me na pele da minha mãe, mas confesso, que agora à distância de tantos anos, não posso deixar de rir. Mas há uma coisa que me intriga, se a menina realmente cheirava mal, como é que eu era capaz de a morder?!

Num dia de chuva intensa, em que supostamente não havia intervalo para o recreio, eis que a chuva pára milagrosamente e temos direito a vir soltar a energia acumulada, em belas corridas e saltos em comprimento sobre poças de água. De repente, surge um cãozito no recreio. Todos andam atrás do cão e o cão, todo contente, não pára de correr de um lado para o outro. Às tantas, o cão volta a sair do recreio por onde entrou, por um buraco na rede, mesmo a um canto. Eu ponho-me de cócoras sobre o muro baixo do lado do recreio com a cabeça e ombros do lado de fora a dizer adeus ao cão. Uma fila de colegas a brincar às corridas, passa por trás de mim e há um que me dá um encontrão.

Toca a campainha para todos regressarem à sala. Todos regressam menos eu. Eu fiquei estendida no chão do lado de fora da escola, com um rio de sangue a sair debaixo de mim. Do lado de fora, o muro era mais alto, e com a queda devo ter desmaiado. Ninguém deu por nada pois, supostamente não havia recreio, e não havia mães ou avós por perto como habitualmente. Naquela parte recreio também não havia nenhum adulto e por isso, só passado algum tempo, quando passaram duas senhoras junto à escola é que me encontraram. Pegaram em mim e levaram-me à escola.

As continas, nome usado na altura para as auxiliares de acção educativa, pegam em mim, e põe-me literalmente de pé com a cabeça inclinada sobre o lavatório da directora a escorrer o sangue que continuava a sair da minha cara, enquanto decidiam o que iriam fazer. Resolveram levar-me aos bombeiros e lá foi uma delas comigo. Eu que era uma miúda de seis anos, pequena e magricela, devia pesar toneladas sem parecer porque levaram-me pelo meu pé por mais de um quilómetro, com uma toalha turca ensopada em sangue colada à cara.

Quando chego aos bombeiros, lembro-me de ser arrancada da contina, e do bombeiro gritar com ela sobre a forma que eu tinha chegado ali. Já tinha perdido muito sangue e fui levada de emergência para o hospital. Lembro-me dos safanões que senti na ambulância e de, chegados ao hospital, voarem comigo em cima da maca, por entre portas e mais portas até entrar numa sala de cirurgia. A pressa era tanta que me levaram para uma sala onde estavam a preparar um homem para uma cirurgia à cabeça!

O que aconteceu, foi que caí em cima de uma garrafa de Sumol partida. Fiz um enorme golpe, do lábio inferior ao queixo, que por pouco me cortou os músculos que existem nessa zona. Usava óculos e no impacto, as lentes estalaram e com a pressão exercida fiquei com dois belos olhos à belenenses. Desde aí, tenho uma bela cicatriz que sobrevive mesmo depois de três operações plásticas feitas enquanto era criança e que ainda suscita muita curiosidade de quem me conhece pela primeira vez.

A escola primária deixa-nos marcas para sempre, mas digamos que as minhas foram um pouco longe demais.

O Natal

É dia 8 de Dezembro. Um dia aguardado com muita expectativa por nós. Hoje vamos montar o nosso pinheiro de Natal. É hoje que tudo se passa e que partimos em busca, por entre as mercearias do bairro, do pinheiro mais bonito que nos vai enfeitar a casa durante um mês. Quanto mais alto for melhor, dizemos nós. Mas a mãe, que já leva uns quantos anos de avanço, sabe que a casa não cresce para albergar aquela árvore imensa que surge imponente no meio das outras, e que nos teremos de contentar com uma mais pequena.

Redonda não, pedimos. Um pinheiro é assim bicudo, mãe, explicamos para que não restem dúvidas. Por entre aqueles ramos de pinheiro manso, tentamos achar como que por magia, um belíssimo exemplar de pinheiro nórdico, como os que se vêem nos filmes de Natal. Nunca achámos esse pinheiro, mas o que escolhíamos para nos fazer companhia nesta quadra, era sempre lindo, ou quase sempre.

Regressamos a casa com o passo apressado. Não há tempo a perder, temos de enfeitar a nossa árvore de Natal. Vamos buscar o vaso de barro e as pedras da calçada que seguram a árvore no sítio. Afastam-se os móveis para que ela tenha lugar de destaque na nossa sala. Enquanto a mãe, vai buscar a caixa com os enfeites, que servem ano após ano, nós tentamos escolher qual é o lado mais bonito da árvore. Separam-se as fitas, desenrolam-se as luzes. Separam-se as peças do presépio, bastante marcadas pelas mãozinhas de duas crianças. E começa a cerimónia de vestir a árvore de luz e de cor.

Primeiro as luzes, a percorrer toda a árvore. De seguida as fitas amarelas, vermelhas e azuis. Depois as bolas e sinos de diferentes tamanhos e formas mas sempre muito coloridos. Vai-se ouvindo: Uma árvore de Natal tem de ter muitas cores, mãe! Estão duas bolas amarelas juntas! Põe antes esta azul. Aí fica feio. Oh mãe! Olha ele que não sabe por as fitas! Oh mãe! Ela não me deixa fazer à minha maneira. Pouco a pouco a árvore ganha vida. Um pouco de algodão faz as vezes da neve. A mãe esconde o vaso com papel de embrulho e põe-lhe um grande laço. Está quase tudo pronto. Só falta o presépio.

Põe-se uma folha verde no chão. Com um pouco de prata, inventamos um rio, onde o pescador e a lavadeira vão passar os seus dias. Um pouco de musgo serve de pasto às ovelhas, vacas e galinhas dos Pin-y-Pons. A casinha de palha, alberga o Menino Jesus, os seus pais, umas quantas ovelhas e uma vaca deitada por trás do Menino, para o manter quente. Os três Reis Magos vão a caminho, no cimo do monte feito de papel amachucado. Colocam-se luzinhas à volta do presépio e por cima do Menino. Recortam-se e pintam-se peixinhos de papel que são lançados ao rio. Pinta-se uma estrela que é colocada no telhado, para que os Reis Magos não se percam no seu caminho. Juntam-se umas quantas pedrinhas a ladear o percurso do rio, e um poço de água fresca.

Chega o momento de acender as luzes. E eis que os nossos olhos presenciam um momento único. As luzes piscam, e as bolas coloridas reflectem essa luz. Tudo brilha, até o nosso sorriso. Apaga a luz mãe! Apaga a luz, pedimos-lhe em coro. Na escuridão tudo ganha outra vida. A nossa árvore é a mais bonita. O nosso presépio também. Mas, depois da excitação do momento, reparamos que ainda não está completa. A árvore continua despida de presentes. A mãe vai buscar então as nossas prendas surpresa. Uma para cada um. Temos autorização para abanar, apalpar mas nunca para abrir. Quando chega ao dia de Natal, o papel está gasto de tanto aperto mas continuamos sem saber o que são. Lembro-me em particular de um ano, que foi especialmente difícil. A minha era uma pá e uma vassoura em lata e a do meu irmão um jogo de Mikado. O que sofremos neste ano. Foi tanto ou tão pouco que ainda me lembro do papel de embrulho que vestia estas prendas!

São estas as únicas prendas, que sabemos serem para nós, que vão estar na árvore. As restantes só apareceram na chaminé, na manhã do dia de Natal. Ainda hoje estou para descobrir como é que a minha mãe conseguia manter escondidos, numa casa que não era grande, todos os nossos presentes sem que os descobríssemos. E o que nós procurávamos! A verdade é que quando acordávamos nesse dia, a surpresa era tanta que ficávamos parados por instantes à procura da prenda surpresa que identificava o nosso monte de prendas! Esta era a primeira a ser aberta porque o coração já não aguentava mais tanta curiosidade! Em geral, o meu irmão rasgava os embrulhos a uma velocidade incrível e eu abria tudo muito lentamente a fazer render as prendas. Havia sempre pelo menos um par de cuecas e meias das tias, um pijama da avó e uma nota de quinhentos escudos da vizinha do lado, para cada um.

Mas, mesmo assim falta qualquer coisa à árvore. Eis que a mãe regressa. Traz com ela o toque final. Sinos, bolas e bichinhos de chocolate envoltos em belas pratas! Sim, com estes no lugar a árvore fica finalmente completa! Tu pões os teus que eu ponho os meus, dizemos um para o outro. São sempre dois de cada: duas bolas, dois sinos, duas joaninhas, etc. Não se esqueçam que só podem comer os chocolates no dia de Reis, lembra a mãe. A mim não me custa nada que até nem gosto, mas para o meu irmão é uma verdadeira prova de resistência.

Foi por isso, que ele se tornou mestre na arte de tirar o chocolate sem estragar a forma à prata. Com muito jeitinho (e sem que nunca ninguém conseguisse descobrir como é que ele fazia), conseguia comer cada chocolate, os dele e os meus, mas sem que se notasse. A minha mãe ia procedendo à inspecção de vez em quando, que consistia em apertar cada enfeite de chocolate, para ver os que já estavam vazios. Eu chorava baba e ranho quando descobria que ele tinha comido uns dos meus, embora não gostasse e nunca comesse mais do que uma dentada de chocolate. Mas para ele, tanto chocolate pendurado à mão de semear era um autêntico suplício.

É dia 8 de Dezembro. E eu, enquanto tiro o meu pinheiro nórdico perfeito, de dentro da caixa de papelão que lhe serve de casa durante o ano, e vou buscar os enfeites de vidro de vários tons mas de apenas duas cores, dos enfeites meticulosamente escolhidos para combinar com o resto da decoração e as luzes todas brancas. Sinto falta das bolas de plástico, das fitas pirosas e dos animais de Pin-y-Pon que faziam as delícias de duas crianças. Sinto falta dos Natais passados e planeio os que estão para vir, para que duas crianças, desta vez as minhas, tenham exactamente as mesmas recordações que eu tive.

A hora

A ânsia de chegar a hora vai crescendo e apoderando-se do nosso todo.

O relógio que não pára nos momentos eternos, que não anda nos que se querem acabados, continua inabalável. A falta que eles nos fazem. Eles, os que amamos, os que estão e os que não estão. Os que já estiveram. Os que queremos connosco.

E a hora que não chega, a ansiedade que não pára...

Estarão bem? Comerão bem? Sentem a nossa falta? Nós sentimos definitivamente a falta que eles nos fazem. É como se não estivessemos completos, como se ao deixá-los tivessem levado com eles um pouco de nós, um pouco que não é assim tão pouco. Um pouco enorme, um pouco imenso.

E os minutos arrastam-se, lentos. Até chegar a hora.

E a hora chega. Precipitamo-nos para eles como se disso dependesse a nossa existência. Filas, trânsito, lugares sentados ou de pé, encontrões, buzinões, pisadelas, sinais vermelhos, não têm importância. São coisas pequenas. Porque e só porque vamos ter com eles. É o que interessa. A única coisa.

E já está. O momento, a hora chegou. Estamos juntos. Um abraço apertado, um beijo repenicado enche-nos o coração de alegria e a face ilumina-se. Acabou. Estamos completos outra vez. Não nos falta nada. Absolutamente nada.

Até que amanhã chegue novamente...

(texto originalmente escrito no Costinhas e não só... em Janeiro de 2005)