Almoço com Deus

Suponhamos que estamos no dia de hoje. Podemos supor a data que quisermos porque o tempo em que ocorre esta história tanto pode ser hoje, como ontem ou amanhã. Mas como não tenho o dom de prever o que ainda não é, será melhor ficarmo-nos por aquilo que já conheço. Assim, suponhamos que foi ontem e pronto.

Eu considero-me ateia. Tomei esta decisão no 11º ano, durante uma das minhas aulas de Filosofia, onde debatemos a origem das religiões. Foi numa dessas aulas que finalmente encontrei as respostas para algumas perguntas que fervilhavam na minha mente. É óbvio que continuo cheia de questões da mesma natureza por resolver mas a idade é outra e a vontade de encontrar uma explicação também. Enfim, tomei consciência que definitivamente não me considerava católica e é isso que interessa agora. Eu acredito no poder dos Homens. Que somos nós os únicos culpados do bom e do mau. Que somos os únicos responsáveis pelo nosso sucesso ou desventura. Que somos nós e o acaso, a sorte ou o azar como lhe queiram chamar.

No entanto, sou uma ateia tolerante. Em Roma sê romano. Sei rezar o Pai-nosso, a Ave-Maria e acompanhar o Terço. Assisto a missas se houver alguma razão para isso, e durante a missa sou tão católica como a pessoa que está ao meu lado. Para mim esse comportamento é apenas uma questão de respeito. Venho de uma família católica, com o casamento passei a fazer parte de uma família que ainda o é mais. Não vejo a necessidade de no final do jantar na casa de uma avó de 80 e tal anos, quando esta se prepara para rezar o terço com filhos e netos, levantar-me e sair dizendo: eu sou ateia, não rezo. A avó não ia compreender e levava aquilo como ofensa directa. Assim, embora evite os convites de jantar na casa daquela avó, quando estou junto-me à ladainha. Ao fazer isso, não sinto que tenha cedido nas minhas convicções nem a fazer nenhuma hipocrisia.

Isto tudo para dizer que almocei com Deus. Não sei se foi com o Deus em que acreditam, mas o Deus que eu escolhi para conhecer. Sim porque isto de escolher um Deus também tem muito que se lhe diga. Afinal quantas religiões adoram o mesmo Deus? Apenas lhe mudam o nome e os mandamentos. Mas o Deus como definição de si mesmo é comum a todas elas. Assim sendo, e lançado o desafio, escolhi para companhia o Deus em que eu não acredito mas que a acreditar seria esse.

Marcamos almoço na minha casa. É na minha casa que eu recebo os amigos e portanto é aí que O quero receber. Se não fosse aqui podia ser em qualquer parte do mundo, desde que fosse tranquilo e sem pressas. Se não fosse aqui que fosse no meio da natureza que é a casa Dele. Nas nossas casas não há contas para pagar nem mesas que se querem vagas para os fregueses que hão-de vir. Nas nossas casas estamos de coração aberto e completamente à vontade. É por isso que não podia ser noutro lugar. Assim à hora marcada chega este Deus que não é o meu mas que morro de curiosidade por conhecer. Não há formalismos porque não há razão para existirem. Este Deus que eu imagino não é superior. É o Pai. Os pais nunca são superiores aos filhos, apenas mais experientes, mais vividos. Mas há muito respeito, porque o respeito deve-se até a quem não nos quer bem. E se há coisa que um Pai quer é ver os filhos bem!

É servido o almoço. Por nós mesmos enquanto conversamos. Não me recordo do que constava a ementa. Sei que foi algo ligeiro e despretensioso. Porque o almoço não foi para alimentar o corpo mas sim a mente. E porquê está Ele a almoçar comigo? Logo eu, uma descrente no meio de tantos que rejubilariam simplesmente por O ver quanto mais se tivessem a honra de privar com Ele durante um almoço. Será para me convencer que realmente existe? Seja qual for o seu motivo a minha lista de perguntas é infinita. Mas se calhar era para me perguntar porque é que eu não acredito Nele. Porque é que eu voltei com a minha palavra atrás. Porque é que eu lhe pedi um favor, dizendo que se o visse realizado acreditaria e continuo sem acreditar. A resposta que lhe dei é muito simples. Sou humana. Os humanos erram e por muito que digam que admitem os seus erros, há coisas que nunca vamos conseguir mudar em nós próprios. Porque são intrínsecas do nosso ser. Porque são a definição do nosso eu. Porque se as corrigíssemos deixaríamos de ser nós próprios para passarmos a ser um eu de outro alguém.

Perguntou-me como eu via a Sua Igreja. Eu disse que adorava os edifícios construídos em Seu nome em tempos idos. Que me sentia em verdadeira paz dentro deles. Mas que não acreditava nos Homens que as tomavam como suas e que continuam em Seu nome a ditar regras de moral e bons costumes totalmente desenquadradas com a realidade actual e que às escondidas dos restantes as ignoravam e procediam a seu belo prazer. Disse-Lhe que a Igreja devia morar no coração dos Homens, e que os Seus ensinamentos deviam ser praticados por todos os que se consideram seus seguidores, não com hora marcada mas em todos os segundos das suas vidas. Que acho menos crentes do que eu, aqueles que O temem e cumprem com todos os ritos desde o acordar ao deitar, mas que findas as rezas não vêem os seus semelhantes como irmãos e são capazes das maiores judiarias para terem sucesso nos seus interesses terrenos. Digo-Lhe que afinal, se calhar até acredito Nele, mas que acredito mais ainda na fraqueza dos Homens e como tal, nunca podia acreditar em palavras supostamente escritas há tantas gerações atrás. As mesmas que já foram impostas de formas tão cruéis que não nos queremos lembrar agora.

A conversa segue a bom ritmo. A cada pergunta que faço, fico ainda com mais dúvidas por responder. O célebre dito "Deus escreve direito por linhas tortas" aplica-se literalmente à forma que Ele escolheu para me satisfazer a curiosidade. Conhece-me bem e sabe que eu não desarmo facilmente. Concedeu-me um desejo. Eu agradeci mas disse-lhe que Ele já mo tinha dado há alguns anos atrás. Disse-lhe que de facto tinha-me dado dois. Deu-me o que eu pedi em troca da minha crença, e libertou-me da minha promessa por saber não iria viver em paz com ela. Sabia que o pedido que Lhe fiz foi baseado na crença de outrem. Para benefício de outro que não eu. Concordou e estando a refeição a chegar ao fim pediu-me uma recordação para levar com Ele. Sorri e disse que já lhe tinha dado algo muito mais importante do que qualquer recordação. Que recordações são o que eu tenho neste momento para me sentir perto do que já Lhe dei. Que não Lhe quero dar mais nada, pois não sou assim tão pura de coração que consiga perdoar o que não tem perdão como Ele supostamente é capaz.

Ficamos em silêncio. Cada um com as suas memórias. Ele, porque conhece o futuro, com as visões do que me espera. Eu com os meus demónios a incitarem-me para lhe pedir contas sobre tudo o que já me tirou sem nenhuma outra justificação a não ser a da própria Lei da Vida. Ficamos assim, Ele em paz e eu numa verdadeira luta para não correr para os Seus pés e lhe pedir chorando que me sossegue a alma e deixe em paz com os meus fantasmas. Que me alivie o meu fardo. Que apague as saudades que me espremem o coração e que me fazem às vezes já não querer fazer parte deste mundo dos vivos só para não as sentir. Que me devolva quem Levou para Lhe fazer companhia à sua mesa. Ficamos em silêncio e é assim que continuamos por tempo que não contei. Se calhar nem nunca falámos.

Vem o café. Por mais açúcar que deite nunca fica tão doce como o milagre da vida. O milagre que me já foi concedido embora não Lho tenha pedido. Que não acredito que tenha sido Ele a dar-me. O silêncio foi instaurado e não se consegue quebrar. Concluo que as dúvidas que tinha não foram explicadas, apenas transformadas. As angústias continuam. A revolta agudiza-se. O silêncio mantém-se mas as minhas batalhas internas começam a ser vencidas. A Sua luz intensifica-se e começa a absorver o meu desassossego. Torna-se mais forte, mais intensa. Um calor invade-me e sorrio. Sinto-me renovada e com mais força para aceitar o que não posso mudar. Não consigo resistir e fecho os olhos para afastar o brilho imenso que me ofusca. Tento abrir os olhos, mas resistem-me.

Sinto-o a afastar-se, mas ainda tenho coisas a perguntar. Esfrego os olhos e luto contra um sono que não sabia existir. Com muito custo olho na direcção dessa luz que me aquece e tento ver para além dela. Pelo entremeio das pálpebras consigo ver o sol que nasce. Que irrompe pela minha janela e se espalha pela minha cama. Acabo de despertar de um sono reparador sem perder de vista a luz que se infiltra por todo o meu corpo, que me aconchega como o regaço materno. Sinto-me tranquila e em paz comigo mesma. Que bela maneira de começar o dia.

15 Comentários:

Blogger Mamuska disse...

Acredites ou não, enquanto estava a ler o teu post, parecia que estava mesmo a ler um livro. Tens mesmo jeito! Parabéns! Beijoss

1:45 da manhã  
Blogger Anna^ disse...

Fiquei emocionada com este teu relato...afinal fiquei a conhecer um bocadinho do teu "eu" mais escondido e essa abertura de alma comoveu-me.A tua relação com ELE é das mais verdadeiras q eu conheço,sem pretensiosismos e falsas crenças!
Obrigada por esta lição!

Bjokas ":o)

11:57 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Absolutamente sem palavras. Disseste tudo, e o Tudo é o Nada. E para se saber que se tem é preciso não o ter. Talvez agora, talvez da época em que nos encontramos, se desperte o que há eternidades, milénios, anda mesmo adormecido. É preciso ouvi-lo, senti-lo, relembrá-lo, e é mais fácil do que se julga, por todas as linhas tortas desta vida que mais não é um canal onde experienciamos o que somos e o que não somos, para então evoluir.
Tu Sandra, não podias tê-lo expressado melhor.
Muita Luz, para Ti e Todos os Teus. Muita Luz para todos Nós. Afinal somos todos 1 só, viemos Dele, como ele vem de Nós.
Beijinho e segue em frente. Publica um livro!

1:47 da manhã  
Blogger Mãe Babada disse...

Segue em frente porque o que li foram mais que palavras...foram sensações e sentimentos que só tu tão bem poderias ter posto em palavras!

3:12 da tarde  
Blogger Célia disse...

Mais uma vez me puseste a chorar... porque mais uma vez me identifico com a tua narrativa...
É bom quando um texto nos deixa arrepiada e emocionada, é sinal que sobre transmitir o sentimento existente na altura da sua elaboração!
Continua...

1:07 da tarde  
Blogger Anabela disse...

Gostei muito.
Identifiquei-me com a narrativa em muitas partes.

Beijinhos

3:19 da tarde  
Blogger scaf disse...

Acho que já te disseram tudo nos comentários atrás. Tens um dom, aproveita-o!
Bjs

9:07 da manhã  
Blogger Oumun disse...

Pois é querida amiga eu sabia que ia gostar do teu almoço mas a verdade é que ADOREI ADOREI :)

Um beijinho grande e
Obrigada :)

11:13 da manhã  
Blogger carla disse...

teste

5:08 da tarde  
Blogger Alice disse...

LINDO!!!
Não páres de escrever.
Alice

6:22 da tarde  
Blogger Confessionário disse...

... e Ele ouviu-te muito atentamento, tenho a certeza!

12:55 da manhã  
Blogger Tão só, um Pai disse...

.... estou a assistir à tua conversa com Ele ...

8:59 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

faço minhas as palavras de quem anteriormente disse que escreves muito bem. Admiro a forma, mas tocou-me imenso o conteúdo. Não me parece que sejas ateia (apenas estás convencida disso). Não foste tu que O convidaste? Nõ foste tu que Lhe abriste a porta de tua casa? Talvez o teu eu, enquanto dormes, te queira mostrar algo (Alguém) que o teu eu acordado não vê... (ou pensa que não vê)!
(foi bom vir aqui parar... vou voltar!)

4:53 da tarde  
Blogger Dulce disse...

Tu não és ateia, Sandra.

2:26 da manhã  
Blogger Jolie disse...

Posso não ser, mas católica é que não sou Dulce.

Sou uma descrente.

8:15 da manhã  

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