O chapéu-de-chuva

Agora há a pretensão de que vivemos numa era de insegurança. Que a violência e os roubos nas escolas são imensos. Que não podemos andar sozinhos na rua à noite. Que as portas dos carros têm de andar fechadas. Que isto e que aquilo. Dizemos sempre, no meu tempo isto não era assim. No meu tempo eu brincava na rua e não havia perigo. No meu tempo ia para a escola sozinha. No meu tempo. Mas afinal qual é o nosso tempo? Não estamos a viver ainda o nosso tempo? Ou será que este já não nos pertence... fico na dúvida. Mas definitivamente no meu tempo não era assim. Volto então atrás nesse tempo até ao que me pertenceu.

Escolho a pré-adolescência que é rica de emoções, boas e más. Nesta idade eu era uma miudita na verdadeira acepção do termo. Magricela, eu era composta basicamente por pele, osso e músculo porque fazia ginástica de competição e, como tal, tinha umas valentes batatas nas pernas e nos braços. Tinha uns óculos de massa transparentes, demasiadamente grandes para as feições delgadas, mas que foram escolhidos ao meu gosto na altura. As saias de ganga compridas e rodadas, com um cinto larguíssimo de elástico preto a ajustar a camisola de malha na cintura ainda por definir. O meu cabelo era longo e liso e, para rematar a pintura, tinha uns belos dentes de coelho. As cores da moda eram o azul eléctrico, o amarelo e o verde. Mas o verde era mesmo verde, nada destas inovações chamadas verde-alface. As cores queriam-se fortes.

Vasculho nas minhas memórias à procura dos colegas de escola. Ainda me lembro de alguns. Vejo a cara deles como se ainda ontem tivessem passado por mim. Algumas caras ainda têm nome, outras nem por isso. A escola não era um lugar fácil para mim. Tudo estava bem enquanto estava nas aulas. O intervalo é que era o pior. Aluna sempre de topo, a fealdade não ajudava nada e era obviamente um belo alvo de troça entre os colegas. Tinha amigos, obviamente. Mas é engraçado que as memórias que se guardam e que se tornam mais presentes não são as boas, antes pelo contrário.

Lembro-me por exemplo, de um dia chegar a casa a chorar compulsivamente, porque uma miúda, que eu sei descrever ao pormenor se assim quiser, me chamou um nome qualquer, e deste já não me recordo, que me caiu particularmente mal. Cheguei a casa e pedi consolo à minha protectora, a minha mãe. Naquela idade a minha mãe ainda tinha aquele brilho que todas as mães têm para os filhos de tenra idade. Ela era a minha mãe e não havia melhor do que ela. É claro que ao longo da adolescência as mães vão ficando um pouco mais opacas, mas isso não tem nada a ver com isto. Ela lá me consolou da forma que soube, e resolveu a questão dizendo, Olha, não penses mais nisso. A próxima vez que ela te chamar nomes pergunta-lhe se ela não tem espelhos em casa. E assim foi. A minha mãe tinha-me dado a poção mágica para os meus males. Fiquei confiante e ao mesmo tempo ansiosa por poder pôr em prática o meu plano de combate.

Não precisei de esperar muito, uns dias depois a desgraçada voltou à carga, mas ao invés de me encolher e de as lágrimas teimarem em sair, o meu peito encheu-se de ar, cresci dois centímetros e respondi-lhe, E tu?! Já te viste ao espelho ou não tens espelhos em casa?! Assim, tal e qual, letra por letra que me lembro bem. Vitória! Ela não teve resposta para dar e foi-se embora. Eu continuei o caminho inchada, como se tivesse acabado de ganhar os jogos olímpicos. Nunca mais ouvi um comentário dela, ouvi de outros como é bom de ver. Mas já não me incomodavam tanto. Até ao ponto de não me incomodarem mesmo. Até ao ponto de perceberem que não fazia sentido continuarem, porque não tinha o efeito desejado.

Mas estes tempos que já não voltam trazem-me também outras memórias. E uma delas é a propósito da segurança nas escolas. No meu tempo, e lá estou eu a falar nele, também havia grupos de miúdos, que agora dão pelo nome de gangs, que infernizavam a vida aos outros à saída da escola.
Queriam dinheiro, roupa, malas, ou aquilo a que conseguissem deitar a mão. Lembro-me particularmente de um dia de chuva. À saída para o almoço, a chuva deu tréguas e deixou-me fazer o caminho de casa sem ser necessário abrir o meu chapéu-de-chuva multicor. Era praticamente novo, quase tão novo como os dias de chuva que tinham chegado. Mas ao entrar em casa, a minha cara estava húmida, não da chuva que não tinha caído, mas das lágrimas que me corriam pela cara. A minha mãe perguntou-me o que se tinha passado e eu mostrei-lhe o meu guarda-chuva que se tinha transformado em dois. O meu guarda-chuva novinho em folha. Que eu tinha escolhido por ter cores tão vivas que me lembravam os dias quentes e as férias de Verão. Esse já não existia. A minha mãe hesitou em ralhar comigo, porque se estava a chorar não tinha feito aquilo por querer; mesmo assim perguntou-me desconfiada como é que tinha feito aquilo. Comecei então a explicar.

Tinha saído da escola quando uns miúdos se aproximaram e me pediram uns trocos. Os que iam comigo ignoraram e seguiram o seu caminho, que nestas coisas ninguém vê nada nem ouve nada. É andar em frente e pedir para que não reparem em ti. Eu disse que não tinha. Pediram-me a mala. Eu disse que não dava. Pediram-me o relógio e um deles chega-se para mo tirar. Eu saco do chapéu-de-chuva e zás, mesmo em cheio na cabeça do rapaz. Não dou, o relógio é meu. Remédio santo. Eles afastam-se, com um deles agarrado à cabeça. Eu sigo para casa com os trocos, a mala, o relógio e um chapéu partido. É engraçado, mas nunca mais se meteram comigo. Porque terá sido? Afinal, no meu tempo também se passavam coisas destas. Ai que saudades do meu chapéu-de-chuva.

9 Comentários:

Blogger Ana disse...

Quando estavas a descrever os relatos de memorias de infancia nao pude deixar de reviver as minhas.. felizmente nunca tive que enfrentar esses gangs de que falas... mas tenho que aplaudir... pois embora o chapeu tivesse chagdo partido a casa nao deixaste os miudos levarem a deles avante... Jokas grandes

PS: adoro as tuas historinhas!

10:12 da manhã  
Blogger Anabela disse...

:)) eu já desconfiava, mas agora agora já sei de onde vem a fibra da tua filha!
Às vezes, um gesto tão pequenino, um conselho tão simples, é o suficiente para nos fazer crescer tanto!
Beijinho grande
PS. e essa tua descrição de óculos, cores vivas, saias rodadas e cintos largos é-me TÃO familiar :))))))))

11:18 da manhã  
Blogger Bekas C. disse...

Olá!
O problema da expressão "no meu tempo" é que não temos o hábito de a completar, por exemplo:
"no meu tempo de criança" "no meu tempo de estudante" "no meu tempo, em que estive grávida" "no meu tempo de mãe de uma criança" etc e tal...
Todos passamos por vários tempos da vida.
;)
p.s. gostei dos óculos.

12:41 da tarde  
Blogger Célia disse...

Esta história, mais uma vez, me fez lembrar dos meus anos de escola!
Mais um ponto na nossa lista de coincidências! :)
Beijocas

4:57 da tarde  
Blogger Anna^ disse...

Saudades do chapéu de chuva? para...?
o usares da mesma maneira??? LOL
olha q vontade se calhar n te faltava...nem oportunidades hehehhe

Gostei...como sempre :)

bjokas ":o)

8:49 da tarde  
Blogger Mamuska disse...

È engraçado que tudo o que escreves se passa na realidade e não só contigo, mas com quase todas as pessoas. Relembrei a minha adolescência, mas graças a deus nunca precisei de um guarda-chuva salvador... Beijoss escritora :)

1:55 da manhã  
Blogger Ana disse...

Todos nós deviamos ter esse chapeu de chuva para afastarmos os que não gostamos e os que nos fazem mal.

A tua descrição da roupa que se usava naquele tempo é demais...como é que conseguíamos gostar daqueles trajes...e pior tenho várias fotos a comprovarem o meu terrível gosto :)

Beijocas

4:50 da tarde  
Blogger Ana Rangel disse...

Olha que foi um guarda-chuva (sim, é assim que se diz no Porto) que me valeu quando fui atacada por 5 cães... graças a ele pude desatar à "vergastada" e só levei duas ferradelas na minha rica coxinha! Mas já vi que lhes posso dar muitos destinos, têm muitas utilidades...

Quanto a esses óculos que tive a oportunidade de ver... hehehe... nem sei se te diga, nem sei se te conte! ;)

Beijinhos!

12:17 da manhã  
Blogger LP disse...

Pois é... no meu tempo também era assim! Linda descrição.

Beijinhos

4:12 da tarde  

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