Sorte ou Azar

Às vezes penso que tenho muita sorte por ainda pisar esta terra. Se existe destino eu não sei. Se a nossa hora está marcada e à espera de ser alcançada, também não sei se acredite. A verdade é que já por três vezes, eu podia ter partido para outro lado, que se espera melhor, e fiquei cá. Como à terceira não foi de vez, resta-me aproveitar bem todos os momentos que me restam.

Das idades já não me lembro bem. Foram de certo entre os meus onze e os quinze anos. Mas as histórias, essas hão-de ficar guardadas na memória, para um dia, quem sabe, contar aos netos, enrolados numa manta à lareira nos dias chuvosos de Janeiro.

A praia da Zambujeira do Mar serve de cenário à primeira das três. Uma manhã de primavera que não convida os turistas a acotovelarem-se no pequeno areal. A praia toda estava por minha conta e da minha madrinha. Deitada na toalha, de headphones nos ouvidos e virada de costas para o mar, a minha madrinha devorava um livro. Eu andava por ali. Já era grandinha e sabia o que fazia. Sabia nadar e tinha muito respeito ao mar onde chapinhava os pés.

Brincava ali pela beirinha com a espuma que se formava. Fazia castelos na areia molhada, que só o eram para quem fosse muito imaginativo. Jogava à apanhada com as ondas daquele mar que se mostrava calmo. Até que sem saber como, dou por mim enrolada numa dessas ondas. Venho ao de cima e vejo a praia, que antes estava ali, mesmo debaixo dos meus pés, mas que agora estava lá longe. Tento chamar pela minha madrinha, mas ou era a voz que não saía, ou era ela que não me ouvia. Tentava esbracejar mas a corrente começava a empurrar-me contra as rochas e precisava dos braços para afastar-me das arestas afiadas pela força das marés. Tentava nadar de volta à costa mas parecia não sair do mesmo sítio.

Mais uma onda que me afunda e quando volto à superfície, vejo alguém a correr na minha direcção. Correu, nadou, agarrou-me e tirou-me daquele mar que ocultava na sua calma a força que realmente tinha. Estava a correr à beira-mar e reparou em mim. Tive sorte, porque a minha madrinha só se apercebeu que alguma coisa se tinha passado quando apareci ao pé dela ofegante. Contada a história, a única pessoa que precisava de assistência médica era ela.

Se desafiei a morte desta vez, consegui pregar-lhe uma rasteira ainda maior da segunda. Pensem em férias de verão. Das que duravam três meses. Eu e os meus irmãos, rumávamos sempre até terras transmontanas para brincar e pular livres como os pássaros. A casa servia apenas para comer e dormir, e alguns afazeres dos quais não nos conseguíamos livrar, que a minha mãe não brincava em serviço. Em frente à casa da minha avó, o Largo do Cimo d'Aldeia convidava a todo o tipo de brincadeiras. Do outro lado, a casa que deu nome ao largo, centenária a brasonada, tinha uma das paredes com uma barriga que já impunha respeito.

Todos os anos, se falava que podia ruir. Todos os anos, as crianças da aldeia se juntavam para brincar junto a essas paredes que proporcionavam a sombra fresca nas tardes quentes de Agosto e que abrigavam os morcegos que saíam apenas ao início da noite. Todos os anos os pais diziam que não nos queriam ali, e todos os anos a gente por lá continuava. Uma manhã, um pouco antes da hora de almoço, éramos quatro crianças a brincar. Eu, os meus irmãos, e a minha grande amiga das férias de Verão, que morava na dita casa.

A mãe dela chamou da janela a pedir lenha para acabar de preparar o caldo, que nestas casas antigas o fogão ainda era desnecessário. Contrariados, afastamo-nos uns cinco metros da brincadeira, para ir buscar a lenha. Um pouco mais à frente a minha mãe lavava nos tanques, e assim que nos vê, chama-nos e corremos em sua direcção. Quando a alcançamos, ouve-se um estrondo imenso e uma nuvem de pó, ergue-se donde ainda há menos de dois minutos estávamos a brincar. Aquelas pedras centenárias não se aguentaram mais e ruíram de uma só vez, preenchendo todo o largo, e esmagando os brinquedos que lá nos esperavam.

Quer os quartos do primeiro andar, quer as cortes do rés-do-chão, ficaram à vista de todos, despidos das paredes que os resguardavam. Um camião estacionado à frente da nossa casa, foi empurrado contra a mesma, pela força daquelas pedras enormes. Um cenário impressionante, que poderia ter sido uma verdadeira catástrofe, não fosse ainda se usar lenha para fazer o caldo, e o fogo estar fraco para o acabar. Mesmo assim, não foi a partir daí que comecei a gostar de sopa.

E como reza o ditado, três é a conta que Deus fez, como tal, até parecia mal que não acontecesse outra história para atingir esse número. Como prenda de termos passado de ano, os meus pais compraram a mim e ao meu irmão, duas biclas novas. A minha, rosa choque, mesmo ao estilo de uma teenager, e a do meu irmão azul e branca, bem à rapaz. A condição imposta pelos meus pais, para que andássemos com as bicicletas na rua, foi a de que tratássemos sozinhos dos documentos para o poder fazer, respeitando as leis municipais. Uma forma de nos responsabilizar e mostrar que, para andar na estrada, não era preciso apenas descer os três lances de escada com a bicla às costas. Por isso, lá tratámos de comprar os reflectores obrigatórios, e preencher a papelada na câmara municipal, com os pedidos de matrículas para as bicicletas e das licenças de condução de velocípedes sem motor.

Tínhamos de ir prestar provas antes de nos ser atribuída a licença. No dia combinado, lá fomos nós responder com mestria às perguntas sobre sinais de trânsito e fazer um oito sob o olhar atento do funcionário da câmara. Passados no exame, restava esperar que nos entregassem as ditas licenças. Ora, toda a gente sabe que não há nada melhor que uma corrida de bicicletas, e para comemorarmos o feito, foi o que decidimos fazer na viagem de regresso a casa. Tínhamos de descer uma rua com alguns cruzamentos, sendo o último o que tinha mais movimento. As bicicletas foram ganhando velocidade por ali abaixo, e eu liderava triunfantemente a disputa.

O único problema, foi que o último cruzamento, aquele onde íamos ter de parar, estava cada vez mais próximo e a estrada cheia de cascalho solto. Daquele excelente para se derrapar em grande estilo, mas péssimo para se travar sem se acabar com os joelhos no chão. Eu apertava o travão de trás de mansinho e a bicicleta tentava fugir-me, apertava um pouco mais o travão e olhava para o tractor das obras que se aproximava pela esquerda. Se apertasse com mais força e a bicicleta simplesmente ia a deslizar até ao cruzamento, se não travasse acabaria debaixo do tractor. Eu travava, e o tractor continuava, eu travava e o tractor repara nos dois putos destravados em cima das bicicletas. Eu continuo a travar e o tractor está mesmo ali. Eu consigo parar e a minha roda da frente está encostada à roda do tractor, que entretanto, travou a fundo mas conseguiu parar.

De olhar fixo no motorista, com o coração aos pulos e com a respiração suspensa durante tempo incerto, volto a montar a bicicleta, contorno o camião e lá vou eu, em frente, como se nada tivesse passado, mas sem conseguir olhar para trás uma única vez.

Posso dizer que o azar já me apareceu do mar, da terra e do ar, mas que felizmente a sorte esteve comigo de todas as vezes. Posso não ter sorte ao jogo, mas haverá melhor jackpot que estes?!