Férias de Agosto

Agosto. Mês dos emigrantes e migrantes por excelência. Mês em que se deixam as grandes cidades para regressar às pequenas aldeias presas nos costumes do passado e perdidas no meio de montes e vales. O destino é sempre o mesmo e aguardado com emoção. Regressamos à terra que nos viu crescer, quer tenha sido apenas nos dias quentes de verão ou durante o ano inteiro, e procuramos reencontrar o nosso passado. A nossa infância.

Quem começa uma viagem em direcção à aldeia, além do carro atestado até ao tecto, leva sempre uma boa dose de expectativa e não vê a hora de chegar. A viagem é feita a rever mentalmente férias antigas, a antecipar noites de farra e dias bem passados na companhia dos amigos de verão. Atravessemos um ou mais países até chegar ao destino, a viagem parece como que interminável. No decorrer, fala-se do tempo que, antigamente, se perdia nas viagens, nas condições das estradas, ou nas camionetas sem ar condicionado que faziam as vezes dos carros de família. Demoramos menos de metade desse tempo, mas continuamos a desejar que não fosse tão longe.

Os últimos dois quilómetros são feitos apressadamente, de ar condicionado desligado e vidros abertos. As mãos tentam agarrar o ar puro que se cheira e um sorrido ilumina a cara. As curvas e contracurvas apertadas sem visibilidade, justificam o uso da buzina, mas ao mesmo tempo, é como se ela também servisse para avisar a nossa chegada. Estamos a chegar e o nervoso miudinho cresce. Este ano a serra está mais verde, os fogos ainda não a fustigaram. É uma questão de tempo, sabemos. Depois de um fogo, a vegetação tem uns anos para se recompor. Assim que se torna demasiado densa para passar com o gado, ou não ajuda a chegar à festa que se faz em Agosto e que chama toda a gente das aldeias vizinhas, ou simplesmente, porque apeteceu a alguém, o fogo eis que surge de novo e que pinta de negro o que outrora era verdejante.

E chegamos. Estamos de novo na nossa aldeia. Entramos na casa que nos acolhe e temos de lhe dar a volta completa, como que a avisar cada quarto da nossa chegada. Seja a nossa casa, a dos pais ou a dos avós, ela esperava-nos e nós tínhamos saudades dela. São casas geralmente sem luxos e com as cicatrizes de quem vai fazendo obras para resolver os problemas e necessidades que aparecem ano a ano. Mas na aldeia há casas para todos os gostos. Desde as pequenas casas de pedra e telhados e xisto e colmo, enegrecidas pelo fumo do lume que aquece a casa, que cozinha o caldo e fuma os enchidos; passando pelas casas de cores mais ou menos destoantes, desenhadas pelo próprio dono, que de construção percebe tanto como de grego; até às vivendas opulentas dos emigrantes, que ou reflectem as tendências dos seus países de acolhimento, ou são verdadeiras homenagens à aldeia.

A aldeia ganha definitivamente nova vidas. Os que lá ficam todo o ano, alegram-se com o corrupio. Os cafés habituados ao silêncio voltam a encher-se de gente, e até as paredes amarelecidas pelo tempo ganham outra cor. Há festas e bailes para animar as noites, campeonatos de futebol e de sueca, que ocupam as tardes e noites dos homens. Troca-se a areia fina pelos seixos, e o imenso mar salgado pelas águas límpidas e doces dos rios e riachos ladeados por densos arvoredos ou escondidos nas reentrâncias dos montes.

Mas com a chegada dos filhos da terra, voltam também os problemas da época. A falta de água nas torneiras, e as eternas guerras por ela incendeiam-se. Quase todas as casas têm um depósito e uma bomba. Os mais velhos continuem a correr para as fontes, que os velhos hábitos não se perdem. Mas agora já não levam os cântaros de outros tempos mas sim garrafões de plástico, pois nem tudo o que é moderno é mau. As ruas estreitas e empedradas recebem carros a mais para as suas capacidades. As noites calmas e o sossego de quem já não está para brincadeiras é perturbado por cortejos, animados pelo som de acordeões, bombos e gaitas de beiços, que param em cada adega e enchem os copos directamente das pipas. ?É caseiro e este é que é bom?, ?Este não tem aquelas porcarias que os outros levam?, ?Este é puro?, pelo menos é o que dizem os entendidos a cada copo que bebem, e que ninguém ouse contrariar.

O céu à noite enche-se de estrelas. São tantas, mas tantas, que poderíamos passar uma noite inteira a contá-las. Procuram-se as constelações conhecidas e inventam-se outras tantas. A Lua guarda este rebanho de estrelas, altiva e brilhante como nunca vista na cidade. Nos mais novos revêem-se os jogos que também nós já brincámos e as paixão de verão que também nós já vivemos. Vivemos com eles a magia dos trabalhos do campo e dos animais. Assiste-se ao nascimento de borregos, vitelos ou bácoros como se de um verdadeiro espectáculo se tratasse. Vão-se buscar os ovos ao galinheiro e não a uma prateleira de supermercado. Arrancam-se as alfaces e as cenouras para a sopa e as couves e o feijão para o conduto. Come-se o pão amassado e cozido por mãos experientes, acompanhado de presunto, salpicão e chouriças.

Mas as férias não são eternas e os dias sucedem-se a uma velocidade estonteante. Antes de se regressar à cidade a que pertencemos durante o resto do ano, já a nostalgia nos invade. As saudades sentem-se mesmo antes de abandonar aquela aldeia. Carregam-se os carros com os frutos da terra, os vinhos,o pão e os enchidos caseiros. Adia-se o regresso o mais possível e derradeiros minutos são vividos intensamente. Percorremos, agora não uma, mas várias casas a despedirmo-nos de quem fica. Fechamos a casa que nos acolheu, ou abraçamos quem deixamos com ela, com uma lágrima a teimar fugir.

Os primeiros dois quilómetros são feitos devagar e em silêncio, de vidros abertos e olhos postos no que nos rodeia. Acenam-se mais umas quantas despedidas e as curvas que pareciam tão apertadas, parecem não mais precisar de buzina para serem feitas em segurança. Estamos a voltar para casa, e levamos a certeza de que, também, o próximo ano terá mais um Agosto. Vamos avançando na estrada, e estamos cada vez mais longe. No entanto, o nosso coração só nos irá reencontrar mais tarde, porque esse ficou preso naquela aldeia e na sua gente. Fechamos os olhos e ainda conseguimos percorrer as ruas, visitar as adegas, saborear o pão, conversar com os amigos e mergulhar nas águas dos rios. Nos próximos onze meses são estas memórias que nos trazem tantas vezes de volta e que encurtam a distância que nos separa no mapa. Porque o que se ama não se esquece, nem se deixa para trás.