A vida
Que dia é hoje? - Penso eu. Rapidamente auxilio-me do calendário ali no canto do ecrã para desvanecer qualquer dúvida. É mesmo hoje. Outra coisa não seria de esperar. Mas se é hoje, quer dizer que a minha história já se passou há muito tempo. Se calhar nem foi assim há tanto tempo. É a minha mania de viver o dia de hoje, de pôr o passado lá bem para trás e o que vem ainda bem longe. Mas adiante e passemos à história. Afinal, foi isso que aqui vim contar.
Estamos no Outono. Num Outono sem chuva e muito sol. Digo estamos, porque estava eu e a minha bebé bem dentro de mim. O tempo entre o momento em que a gerei e a hora em que estou quase a trazê-la ao mundo passou-se num ápice. Na realidade, passou-se à velocidade que todo o tempo passa, mas agora que estou prestes a deixar de a sentir dentro de mim, parece-me que foi tudo muito rápido. Rápido até demais.
Correu tudo tão bem. Tão calmamente, sem nenhumas daquelas queixas que assolam as grávidas. Nem enjoos nem desejos. Bom, em boa verdade, aqueles dois cálices de Favaios que bebi de um trago, ainda desconhecendo o meu estado de graça, foi fruto de uma vontade incontrolável de os beber. Logo eu que raramente bebo. Quanto muito, um belo vinho verde branco a acompanhar uma boa refeição. Apenas uns problemas de má circulação que obrigaram ao uso de meias de compressão no verão mais quente dos últimos sei lá quantos anos.
O que é certo é que estou a horas de ver cara a cara o meu bem mais precioso. Ela que me acompanhou durante trinta e nove semanas e uns dias, que me fustigou com os seus pontapés e contorcionismos, divertindo olhares alheios e atónitos ao verem tais movimentos numa barriga. Ela que não me deixava dormir senão sobre o meu lado esquerdo, tendo eu sempre dormido sobre o meu lado direito. Ela que gostava de ouvir músicas cantadas pela mamã. Ela que durante a noite, enquanto eu dormia, brincava com o seu papá respondendo às suas festas com verdadeiros pulos e pontapés de alegria, num momento só deles.
Ela estava quase a mostrar mais um pouco de si. Que o nariz era igualzinho ao do pai isso já se sabia, pois tinha feito questão de o mostrar na última ecografia. Sabia também que tinha algum cabelo e que era um bebé cheio de energia. Sabia que ela não estava a dar indícios de querer abandonar aquela piscina aquecida e que o meu corpo também não dava sinais de se querer livrar dela. Optámos por dar-te um empurrãozinho, e dessa forma ter a presença garantida do médico que sempre nos seguiu, a ti e a mim, nesse momento crucial das nossas vidas.
É de madrugada. Acordo com umas moínhas que não dão sinais de desaparecer. Entre o desconforto da dor, o sono que não desapareceu totalmente e a alegria por sentir o primeiro sinal, levanto-me e volto-me a deitar num belo banho de água tépida. A dor acalma, o sono esvai-se e a alegria aumenta. Começam-se então a contar os tempos. As dores que se tornam cada vez mais presentes. O nervoso que começa a querer controlar as minhas acções a fazer-me esquecer da teoria que aprendi. A manhã demora a chegar, e não vejo a hora de entrar no carro e sair na tua direcção. Mas que parvoíce, tu estás comigo! Mas é como se não estivesses. Como se agora para te ter realmente fosse necessário chegar a um outro lugar, como se não bastasse pousar a mão na minha barriga,
Saímos. É necessário parar para pôr gasóleo. Típico. Aproveita-se e compram-se os jornais do dia para guardar, e um Noddy de peluche para oferecer ao nosso afilhado como se fosse ela a trazer. Depósito atestado, diário, semanal e desportivo, devidamente dobrados, prenda num saco e lá vamos nós. A espera de alguns minutos para dar entrada no quarto parece interminável. Movo-me naquela sala de espera como se fosse um animal enjaulado. Para a frente, para trás. Para a direita, para a esquerda. Festas e mais festas sobre a minha barriga endurecida, que tarde demais aprendi serem causadores de ainda mais dores, pois estimulavam as contracções. Entramos.
A mãe cada vez mais queixosa, ansiosa e facilmente irritável. O pai ao lado a ler o jornal tranquilamente. A mãe protesta que tem dores. O médico diz que a mãe não tem cara de quem vai ter um filho. A mãe espanta-se pois não sabe da existência desse tipo de cara, e indigna-se pois acha que a merece. O pai ri-se. A mãe desespera com o avançar das horas e com as contracções constantes. O pai diz pelo o telemóvel que a mãe nem tem assim tantas dores como isso. O médico tenta incentivar a filha a sair. A filha quer lá ficar. A mãe começa a bufar. O pai quase que adormece no cadeirão.
As horas foram passando. O parto normal cada vez está mais distante e o que a mãe não queria nem por nada começa a afigurar-se como única opção. As contracções aumentam, a mãe perde o controle e tem finalmente a cara de quem vai ter um filho. O pai com os nervos ri-se dos nervos da mãe. A mãe ri-se com o pai. As dores apertam, e a mãe não se lembra de respirações ou nenhuma outra técnica aprendida em tempos que já lá vão. É uma enfermeira que ajuda a mãe a recuperar o controle. Com controle ou sem ele, que venha mas é a anestesia que a mãe não foi feita para sofrer o que pode ser evitado. Ao fim de 18 horas a mãe consegue chegar a uns míseros seis dedos de dilatação. A mãe está cansada. A filha também. O pai é melhor estar caladinho que a mãe não está pelos ajustes.
Onze horas da noite. Levam-me para o bloco. Tremo naquela marquesa gelada. Associo a minha imagem assim deitada e com os meus braços amarrados, a situações de morte e não de vida. Que estupidez de pensamentos. Estou farta. Literalmente farta de esperar por ela. Farta, agoniada e tremo de frio. Só desejo a hora de ver tudo acabado e a possa ter finalmente nos braços. Tento acompanhar o que se passa à minha volta mas não consigo. Não consigo mais. Passam vinte horas desde que acordei e só penso em voltar a adormecer. Quero dormir, mas antes preciso de ouvi-la, vê-la e senti-la.
Passam dois minutos de um novo dia, e eis que uma nova vida chora. Eis que ela surge cheia de garra. Eu sorrio e finalmente sossego. Levam-na e à sua espera está o pai todo de verde, como que saído de um E.R. português. É ele quem a vê pela primeira vez. É ele quem a pega pela primeira vez. É ele que continua preocupado comigo sabendo-a bem. Ela está aí. Finalmente.
Chega então o momento de a ver cara a cara. Vem bem enrolada, de olhos bem abertos e muito calma. Olha para mim e arregala os olhos como quem pensa: Bolas, esta é que é a minha mãe?! Xiii estou tramada! O que me foi calhar! Eu olho para ela e penso: Bolas, é a minha cara chapada. Xiii está tramada! Podia ter tido mais sorte!. Beijo-a demoradamente e só lhe consigo sussurrar: Amo-te filha.
Estamos no Outono. Num Outono sem chuva e muito sol. Digo estamos, porque estava eu e a minha bebé bem dentro de mim. O tempo entre o momento em que a gerei e a hora em que estou quase a trazê-la ao mundo passou-se num ápice. Na realidade, passou-se à velocidade que todo o tempo passa, mas agora que estou prestes a deixar de a sentir dentro de mim, parece-me que foi tudo muito rápido. Rápido até demais.
Correu tudo tão bem. Tão calmamente, sem nenhumas daquelas queixas que assolam as grávidas. Nem enjoos nem desejos. Bom, em boa verdade, aqueles dois cálices de Favaios que bebi de um trago, ainda desconhecendo o meu estado de graça, foi fruto de uma vontade incontrolável de os beber. Logo eu que raramente bebo. Quanto muito, um belo vinho verde branco a acompanhar uma boa refeição. Apenas uns problemas de má circulação que obrigaram ao uso de meias de compressão no verão mais quente dos últimos sei lá quantos anos.
O que é certo é que estou a horas de ver cara a cara o meu bem mais precioso. Ela que me acompanhou durante trinta e nove semanas e uns dias, que me fustigou com os seus pontapés e contorcionismos, divertindo olhares alheios e atónitos ao verem tais movimentos numa barriga. Ela que não me deixava dormir senão sobre o meu lado esquerdo, tendo eu sempre dormido sobre o meu lado direito. Ela que gostava de ouvir músicas cantadas pela mamã. Ela que durante a noite, enquanto eu dormia, brincava com o seu papá respondendo às suas festas com verdadeiros pulos e pontapés de alegria, num momento só deles.
Ela estava quase a mostrar mais um pouco de si. Que o nariz era igualzinho ao do pai isso já se sabia, pois tinha feito questão de o mostrar na última ecografia. Sabia também que tinha algum cabelo e que era um bebé cheio de energia. Sabia que ela não estava a dar indícios de querer abandonar aquela piscina aquecida e que o meu corpo também não dava sinais de se querer livrar dela. Optámos por dar-te um empurrãozinho, e dessa forma ter a presença garantida do médico que sempre nos seguiu, a ti e a mim, nesse momento crucial das nossas vidas.
É de madrugada. Acordo com umas moínhas que não dão sinais de desaparecer. Entre o desconforto da dor, o sono que não desapareceu totalmente e a alegria por sentir o primeiro sinal, levanto-me e volto-me a deitar num belo banho de água tépida. A dor acalma, o sono esvai-se e a alegria aumenta. Começam-se então a contar os tempos. As dores que se tornam cada vez mais presentes. O nervoso que começa a querer controlar as minhas acções a fazer-me esquecer da teoria que aprendi. A manhã demora a chegar, e não vejo a hora de entrar no carro e sair na tua direcção. Mas que parvoíce, tu estás comigo! Mas é como se não estivesses. Como se agora para te ter realmente fosse necessário chegar a um outro lugar, como se não bastasse pousar a mão na minha barriga,
Saímos. É necessário parar para pôr gasóleo. Típico. Aproveita-se e compram-se os jornais do dia para guardar, e um Noddy de peluche para oferecer ao nosso afilhado como se fosse ela a trazer. Depósito atestado, diário, semanal e desportivo, devidamente dobrados, prenda num saco e lá vamos nós. A espera de alguns minutos para dar entrada no quarto parece interminável. Movo-me naquela sala de espera como se fosse um animal enjaulado. Para a frente, para trás. Para a direita, para a esquerda. Festas e mais festas sobre a minha barriga endurecida, que tarde demais aprendi serem causadores de ainda mais dores, pois estimulavam as contracções. Entramos.
A mãe cada vez mais queixosa, ansiosa e facilmente irritável. O pai ao lado a ler o jornal tranquilamente. A mãe protesta que tem dores. O médico diz que a mãe não tem cara de quem vai ter um filho. A mãe espanta-se pois não sabe da existência desse tipo de cara, e indigna-se pois acha que a merece. O pai ri-se. A mãe desespera com o avançar das horas e com as contracções constantes. O pai diz pelo o telemóvel que a mãe nem tem assim tantas dores como isso. O médico tenta incentivar a filha a sair. A filha quer lá ficar. A mãe começa a bufar. O pai quase que adormece no cadeirão.
As horas foram passando. O parto normal cada vez está mais distante e o que a mãe não queria nem por nada começa a afigurar-se como única opção. As contracções aumentam, a mãe perde o controle e tem finalmente a cara de quem vai ter um filho. O pai com os nervos ri-se dos nervos da mãe. A mãe ri-se com o pai. As dores apertam, e a mãe não se lembra de respirações ou nenhuma outra técnica aprendida em tempos que já lá vão. É uma enfermeira que ajuda a mãe a recuperar o controle. Com controle ou sem ele, que venha mas é a anestesia que a mãe não foi feita para sofrer o que pode ser evitado. Ao fim de 18 horas a mãe consegue chegar a uns míseros seis dedos de dilatação. A mãe está cansada. A filha também. O pai é melhor estar caladinho que a mãe não está pelos ajustes.
Onze horas da noite. Levam-me para o bloco. Tremo naquela marquesa gelada. Associo a minha imagem assim deitada e com os meus braços amarrados, a situações de morte e não de vida. Que estupidez de pensamentos. Estou farta. Literalmente farta de esperar por ela. Farta, agoniada e tremo de frio. Só desejo a hora de ver tudo acabado e a possa ter finalmente nos braços. Tento acompanhar o que se passa à minha volta mas não consigo. Não consigo mais. Passam vinte horas desde que acordei e só penso em voltar a adormecer. Quero dormir, mas antes preciso de ouvi-la, vê-la e senti-la.
Passam dois minutos de um novo dia, e eis que uma nova vida chora. Eis que ela surge cheia de garra. Eu sorrio e finalmente sossego. Levam-na e à sua espera está o pai todo de verde, como que saído de um E.R. português. É ele quem a vê pela primeira vez. É ele quem a pega pela primeira vez. É ele que continua preocupado comigo sabendo-a bem. Ela está aí. Finalmente.
Chega então o momento de a ver cara a cara. Vem bem enrolada, de olhos bem abertos e muito calma. Olha para mim e arregala os olhos como quem pensa: Bolas, esta é que é a minha mãe?! Xiii estou tramada! O que me foi calhar! Eu olho para ela e penso: Bolas, é a minha cara chapada. Xiii está tramada! Podia ter tido mais sorte!. Beijo-a demoradamente e só lhe consigo sussurrar: Amo-te filha.