A maçã riscadinha
Quando era miúda, não comia nada. Simplesmente porque não tinha fome. Lembro-me perfeitamente de estar horas em frente a um prato frio de comida e não ter fome para comer o que outros achavam que era o mínimo necessário ao meu bem-estar. A verdade é que comia e dormia pouco. Nem sei como é que a minha mãe ainda arriscou a ter mais dois filhos. O que eu gostava mesmo era de leitinho, e não havia dia em que me deitasse sem o meu leitinho bom, ou seja, leitinho morno devidamente acondicionado num biberão.
Já não me lembro que idade teria, mas era certamente muito pequena, quando tive de ser operada a uma hérnia umbilical. Nada de dramas para os pais, porque seria uma intervenção relativamente simples, a única restrição era eu não comer nada algumas horas antes da operação e que a última refeição fosse bastante ligeira. Pais sossegados, pois como é bom de ver, esta restrição não oferecia qualquer preocupação a quem tem uma menina que não gosta de comer.
Desta forma e marcado o dia da operação, o meu pai leva-me a uma loja de brinquedos para escolher uma prenda, o eleito foi um boneco de cabelo louro encaracolado e corpo de espuma, a qual chamei de Chiquinho. Ou foi esse, ou uma boneca de cabelo liso, grosso e castanho-escuro, chamada Matilde. Não me lembro bem, a memória desses tempos é traiçoeira e mistura tudo numa amálgama de recordações. Cabe-me agora a árdua tarefa de as destrinçar e atribuir uma data e local aceitáveis a todas elas.
Prenda comprada, voltamos para casa, onde uma mãe ansiosa tem a belíssima ideia de perguntar a uma filha, habitualmente sem fome, o que queria almoçar. Hum, olha está-me mesmo a apetecer dobrada com feijão branco, disse eu com o ar mais natural do mundo. Espantada com tal desejo pergunta-me: Mas não queres antes um bifinho com batatinhas fritas? Ela conhecia a filha que tinha, e sabia que depois de ter metido uma coisa na cabeça não havia quem me fizesse mudar de opinião, por isso a resposta seguinte era a esperada: Não! Quero dobrada com feijão branco! Já disse. Pois, nesse dia nem houve dobrada com feijão branco para o almoço, nem uma certa menina almoçou! A minha mãe habituada com tais reacções nem ficou preocupada. Em geral aguentava-me até ao jantar sem comer nada, por isso não fez caso. Vai arranjar a tua cestinha com o que queres levar, disse-me ela.
Lá fomos nós, pai, mãe e filha com o seu boneco novo e cesta de palhinha com a bonecada que lhe apeteceu lá colocar. Chegados à sala de espera, vários meninos, todos a aguardarem pela sua vez e a fazerem a cabeça em água aos respectivos progenitores. As horas foram passando e o atraso começou a fazer-se sentir, e uma menina que habitualmente não come começou a ficar com fome. Apetecia-lhe comer e tinha sede. A mãe respondia que não, não podia e tinha de esperar mais um bocadinho. A menina lá voltava a insistir, tinha fome. Onde já se viu! Uma criança que nunca tem fome a pedir comida! Tudo bem, a mãe não cede, o pai também não. A menina não desarma e vai buscar a sua malinha, abre-a e de dentro dela, por entre os brinquedos sai a solução para os seus problemas. Uma bela maçã riscadinha, que exalava um perfume adocicado e que apurava o paladar daquela menina que já não aguentava mais. De boquita aberta, a maçã aproxima-se perigosamente. Por fim, a sua fome ia ser saciada. Os lábios tocam na casca, os olhos fecham-se, um sorriso travesso escapa pelos cantos daquela boquinha ávida por uma dentada.
Pára!!! Não faças isso! Ouve-se do outro canto da sala, mas cada vez mais perto da menina, que só por um acaso era eu própria, e da sua maçã. A mãe já disse que não podias comer, onde é que foste buscar a maçã, perguntou-me. Trouxe de casa, porque podia ficar com fome, respondi eu, a seguir a maçã com os olhos. Tens de esperar mais um bocadinho, agora não podes comer nada, explicou-me a minha mãe. Mas eu não queria explicação nenhuma, eu queria era comer qualquer coisita e de preferência a maçã que tinha trazido. A vontade não é satisfeita por isso, toca a afinar as goelas e chorar a plenos pulmões, a ver se assim se consegue alguma coisa. É quando estou a chorar baba e ranho que chega a enfermeira para me vir buscar. Logo a seguir, veio mais um enfermeiro, para dar uma ajudinha, a menina, ou melhor eu, não quer colaborar. O melhor mesmo, era vir a equipa do bloco. Toda! E foi assim, segurada pelas pernas, braços e cabeça por dois médicos e três enfermeiros que cruzei as portas de batente que davam acesso ao bloco.
Eu pontapeei, eu mordi, eu arranhei, eu fiz tudo ao meu alcance para conseguir comer a minha maçã. Chorei e pedi por ela, até as várias luzes que me ofuscavam por cima da marquesa se tornarem apenas numa. As vozes que me tentavam sossegar foram ajudadas pela força da droga e lá finalmente adormeci. Finda a operação, fui levada para o quarto, num sono angelical que não denunciava a fúria que o precedeu. Terminado o serviço no bloco, o cirurgião veio sentar-se à beira da minha cama e junto com a minha mãe esperou que acordasse. Ela pode acordar em sobressalto, explicou à minha mãe. Pode rebentar os pontos e nós não queremos isso.
A minha mãe olhou para este médico que ostentava dois belos arranhões na cara e uma dentada no pulso, de seguida olhou para mim e para a minha tranquilidade forçada. Estava preocupado e isso via-se. Esperaram os dois no silêncio de quem não sabe o que aí vem. Mexi-me, e os dois chegaram-se à frente. Virei a cara na direcção deles, abri um olho, de seguida o outro. Estremunhada, fito os dois. Por fim, depois de reconhecer a cara da minha mãe, ainda meio adormecida e num tom sofrido, disse: Quero a minha maçã riscadinha...
Já não me lembro que idade teria, mas era certamente muito pequena, quando tive de ser operada a uma hérnia umbilical. Nada de dramas para os pais, porque seria uma intervenção relativamente simples, a única restrição era eu não comer nada algumas horas antes da operação e que a última refeição fosse bastante ligeira. Pais sossegados, pois como é bom de ver, esta restrição não oferecia qualquer preocupação a quem tem uma menina que não gosta de comer.
Desta forma e marcado o dia da operação, o meu pai leva-me a uma loja de brinquedos para escolher uma prenda, o eleito foi um boneco de cabelo louro encaracolado e corpo de espuma, a qual chamei de Chiquinho. Ou foi esse, ou uma boneca de cabelo liso, grosso e castanho-escuro, chamada Matilde. Não me lembro bem, a memória desses tempos é traiçoeira e mistura tudo numa amálgama de recordações. Cabe-me agora a árdua tarefa de as destrinçar e atribuir uma data e local aceitáveis a todas elas.
Prenda comprada, voltamos para casa, onde uma mãe ansiosa tem a belíssima ideia de perguntar a uma filha, habitualmente sem fome, o que queria almoçar. Hum, olha está-me mesmo a apetecer dobrada com feijão branco, disse eu com o ar mais natural do mundo. Espantada com tal desejo pergunta-me: Mas não queres antes um bifinho com batatinhas fritas? Ela conhecia a filha que tinha, e sabia que depois de ter metido uma coisa na cabeça não havia quem me fizesse mudar de opinião, por isso a resposta seguinte era a esperada: Não! Quero dobrada com feijão branco! Já disse. Pois, nesse dia nem houve dobrada com feijão branco para o almoço, nem uma certa menina almoçou! A minha mãe habituada com tais reacções nem ficou preocupada. Em geral aguentava-me até ao jantar sem comer nada, por isso não fez caso. Vai arranjar a tua cestinha com o que queres levar, disse-me ela.
Lá fomos nós, pai, mãe e filha com o seu boneco novo e cesta de palhinha com a bonecada que lhe apeteceu lá colocar. Chegados à sala de espera, vários meninos, todos a aguardarem pela sua vez e a fazerem a cabeça em água aos respectivos progenitores. As horas foram passando e o atraso começou a fazer-se sentir, e uma menina que habitualmente não come começou a ficar com fome. Apetecia-lhe comer e tinha sede. A mãe respondia que não, não podia e tinha de esperar mais um bocadinho. A menina lá voltava a insistir, tinha fome. Onde já se viu! Uma criança que nunca tem fome a pedir comida! Tudo bem, a mãe não cede, o pai também não. A menina não desarma e vai buscar a sua malinha, abre-a e de dentro dela, por entre os brinquedos sai a solução para os seus problemas. Uma bela maçã riscadinha, que exalava um perfume adocicado e que apurava o paladar daquela menina que já não aguentava mais. De boquita aberta, a maçã aproxima-se perigosamente. Por fim, a sua fome ia ser saciada. Os lábios tocam na casca, os olhos fecham-se, um sorriso travesso escapa pelos cantos daquela boquinha ávida por uma dentada.
Pára!!! Não faças isso! Ouve-se do outro canto da sala, mas cada vez mais perto da menina, que só por um acaso era eu própria, e da sua maçã. A mãe já disse que não podias comer, onde é que foste buscar a maçã, perguntou-me. Trouxe de casa, porque podia ficar com fome, respondi eu, a seguir a maçã com os olhos. Tens de esperar mais um bocadinho, agora não podes comer nada, explicou-me a minha mãe. Mas eu não queria explicação nenhuma, eu queria era comer qualquer coisita e de preferência a maçã que tinha trazido. A vontade não é satisfeita por isso, toca a afinar as goelas e chorar a plenos pulmões, a ver se assim se consegue alguma coisa. É quando estou a chorar baba e ranho que chega a enfermeira para me vir buscar. Logo a seguir, veio mais um enfermeiro, para dar uma ajudinha, a menina, ou melhor eu, não quer colaborar. O melhor mesmo, era vir a equipa do bloco. Toda! E foi assim, segurada pelas pernas, braços e cabeça por dois médicos e três enfermeiros que cruzei as portas de batente que davam acesso ao bloco.
Eu pontapeei, eu mordi, eu arranhei, eu fiz tudo ao meu alcance para conseguir comer a minha maçã. Chorei e pedi por ela, até as várias luzes que me ofuscavam por cima da marquesa se tornarem apenas numa. As vozes que me tentavam sossegar foram ajudadas pela força da droga e lá finalmente adormeci. Finda a operação, fui levada para o quarto, num sono angelical que não denunciava a fúria que o precedeu. Terminado o serviço no bloco, o cirurgião veio sentar-se à beira da minha cama e junto com a minha mãe esperou que acordasse. Ela pode acordar em sobressalto, explicou à minha mãe. Pode rebentar os pontos e nós não queremos isso.
A minha mãe olhou para este médico que ostentava dois belos arranhões na cara e uma dentada no pulso, de seguida olhou para mim e para a minha tranquilidade forçada. Estava preocupado e isso via-se. Esperaram os dois no silêncio de quem não sabe o que aí vem. Mexi-me, e os dois chegaram-se à frente. Virei a cara na direcção deles, abri um olho, de seguida o outro. Estremunhada, fito os dois. Por fim, depois de reconhecer a cara da minha mãe, ainda meio adormecida e num tom sofrido, disse: Quero a minha maçã riscadinha...