Sonhos

Estou sozinha em casa e ainda de pijama. Tenho uns vinte e poucos anos, e a casa onde estou é a única onde vivi até essa idade. Estou grávida de fim de tempo. Vou à casa-de-banho e quando estou sentada na sanita, uma vontade imensa de puxar toma conta de mim. Percebi que estava na hora. Penso que tenho de chamar alguém mas a vontade crescente em fazer força e as dores não me deixam mexer. Vou ter de ter a criança sozinha, penso novamente. Apoio-me na pedra do móvel do lavatório, ponho-me na posição que me é mais confortável e puxo, respiro e semicerro os dentes como a intuição me dita. Tiro umas toalhas do móvel e ponho-as no chão. Passado pouco tempo, tenho um bebé, sujo e muito chorão do lado de fora. Embrulho-o e seguro-o colado a mim. A minha preocupação vira-se para o cordão umbilical. Como fazer?! Vou à cozinha buscar molas da roupa, e aperto-o o melhor que consigo, cortando-o de seguida. Pego no telefone e chamo o 112 para nos virem buscar.

Fico ali enamorada do meu bebé, e decido-lho o nome. Aquela cara tão perfeitinha e o cabelito todo colado, a boquinha que abre e fecha num bocejo lento. Uma tranquilidade, uma felicidade como não existe outra. De seguida, aquela vontade volta. Apetece-me puxar e muito. Na barriga sinto como que outro bebé. Não é possível, penso eu. O médico não se pode ter enganado e serem gémeos!? Depois lembrei-me de ter ouvido falar em alguém que teve gémeos e que um nunca se deixou ver por estar sempre atrás do outro. Pode ter acontecido o mesmo. Vou ter outro bebé! E volto a preparar-me, pousando o bebé que tinha nos meus braços na banheira, embrulhado na toalha e numa manta.

Repete-se tudo. Muito esforço, muita dor, e um bebé volta a sair de dentro de mim. Tão diferente do primeiro, de outro sexo até. Muito chorão, muito sujo, muito mas muito lindo aos meus olhos. Desta vez, as molas da roupa já estavam à mão, e tudo foi feito com maior destreza. Dois bebés. Lindos, e que me pareciam bem de saúde. Eu, cansada, transpirada, dorida mas muito feliz. O que vale é que a ambulância já deve vir a caminho. Não saio daquela casa-de-banho. Mantenho-me ali com os meus dois bebés, e seguro-os junto de mim. Bem coladinhos a mim.

Eis senão quando, aquela dor regressa. Ai não pode ser, digo eu. E a ambulância que não há meio de chegar. A dor aperta a vontade de puxar também. Não podem ser três, penso eu, num desespero crescente. Em tantas ecografias, como é que não viram isso? A dor cresce mas o meu cansaço é demasiado. Ponho os dois bebés na banheira. Tiro as últimas toalhas do armário. Estou cansada, eu não consigo, é o único pensamento que me assola. E a ambulância que não chega.

A dor e a necessidade de tirar aquele bebé de dentro de mim é maior que o meu cansaço. Puxo, respiro e sigo sem pensar o que o meu corpo me dita. Novamente um bebé chorão, sujo e lindo, e tão diferente dos outros dois me enche os olhos de lágrimas. Nesse momento entram finalmente os médicos do INEM que tomam conta da situação. Suspiro de alívio e perco as forças que pareciam restar.

Fecho os olhos, e quando os abro já não estou na casa-de-banho. Estou na minha cama. Na casa onde vim morar depois de casada, com o meu marido ao lado a dormir um sono profundo. Olho para a barriga, e vejo o meu ventre liso. Foi um sonho. Um sonho tão intenso, que me deixou transpirada, ofegante e com todos os meus ossinhos doridos. Levanto-me, mas as pernas falham-me, dói-me a andar e o cansaço é brutal. Foi só um sonho. Não estou grávida nem planeio a vir a estar tão depressa. Já não me consigo lembrar do sexo dos bebés, mas tenho a sensação que o primeiro e o último tinham sido meninas, e o segundo um rapaz. Já não me consigo lembrar dos nomes que escolhi. Mesmo as caras de cada um estão envoltas numa névoa que não me deixa reconhecer os seus contornos.

Durante todo o dia, me doeu o corpo e o cansaço não me largou. Mas ao mesmo tempo, um sorriso idiota teimava em fixar-se na minha cara. A lembrança deste sonho não vai desaparecer nunca. E quem sabe, se um dia, estes três bebés não vão fazer mesmo parte da minha vida.